NA ESTEIRA das denúncias de espionagem em massa feitas pelo ex-analista da CIA Edward Snowden, o Brasil prometeu levar a discussão sobre o controle da internet para a ONU. Mas o que isso significa exatamente?
Nesta entrevista, Allan Friedman, do Instituto Brookings, um prestigioso e influente centro de pesquisas em Washington, explica o debate em torno do controle – ou governança, na linguagem burocrática – da internet.
Atualmente, a organização responsável por estabelecer as regras para o uso da internet é o ICANN, com sede nos Estados Unidos. A entidade controla, por exemplo, os nomes de domínios e distribui os números de Protocolos de Internet (IPs).
Friedman explicou que no passado houve tentativas de democratizar o funcionamento do órgão, mas que isso não afastou as acusações de que permaneça sob influência majoritária do governo americano. Por isso, após as denúncias, o Itamaraty indicou que levaria a discussão à União Internacional de Telecomunicações (UIT), um órgão da ONU cujo objetivo é promover e aconselhar as práticas internacionais para o setor.
O Brasil disse que pretende lançar normas internacionais que “protejam a privacidade dos cidadãos” e ao mesmo tempo “preservem a soberania de todos os países”. Mas será que aumentar o poder de países da ONU – entre os quais alguns ‘vilões’ da censura, como China e Rússia – na rede seria a solução ideal? Veja a opinião de Friedman.
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Pergunta – Depois das denúncias reveladas por Edward Snowden, o Brasil insinuou que levaria à UIT, da ONU, uma nova proposta para regular a internet globalmente. Que implicações isso poderia ter para a internet?
Allan Friedman – O debate sobre governança vs segurança da internet é marcado por duas posições: uma pretende manter o status quo, através do ICANN; a outra pretende negociar um novo grupo de legislações de telecomunicações que dê maior poder à UIT (União Internacional das Telecomunicações) da ONU. O ICANN segue uma política de ouvir múltiplas partes: os países, as empresas, organizações, os engenheiros… mas não é uma organização estritamente democrática. Os EUA e outros países ocidentais acreditam que esse modelo funciona bem. Os que se opõem a ele acham que é importante um órgão internacional nos moldes da ONU.
Pergunta – Quais são as principais diferenças entre esses dois modelos?
Países como a China querem mais controle sobre suas redes em nível técnico. Já quase todas as ONGs de direitos humanos envolvidas na discussão acham que a proposta (de fortalecer uma ‘ONU das telecomunicações’) promoveria mais vigilância, monitoramento e uma certa fragmentação do controle da internet. A posição americana é a de que manter o status quo acaba sendo mais democrático para a internet, mas depois dos escândalos, isso soa oco. O desafio para os EUA agora é dizer que, apesar de tudo isso que está ocorrendo, nós ainda respeitamos mais os direitos humanos do que as outras alternativas.
Pergunta – O sr. acha que uma tentativa de democratizar o controle da internet pela ONU poderia sair pela culatra?
Friedman – Meu medo é se essas preocupações com a privacidade levem à criação de leis que resultem pior para os direitos humanos. Por exemplo: vários países da Primavera Árabe derrubaram suas redes, o que a proposta da ONU facilitaria. Há um temor legítimo entre entidades de direitos humanos de que qualquer tentativa de falar de política de internet na ONU dê mais voz a países que querem usar a internet como uma ferramenta de opressão e censura. Se você acredita que o espaço cibernético é melhor sem interferência, é melhor deixar a ONU longe dele.
Isto dito, a inteligência americana ultrapassou os limites de suas atribuições, e o resultado criou repercussões negativas. Foi um abalo para as empresas americanas, que agora precisam retomar a confiança de seus clientes em todo o mundo, e para a sociedade civil, que acreditava que os EUA estavam agindo de boa fé.
Pergunta – E qual pode ser a solução?
Friedman – A solução, acredito, precisa ser transparência e que os EUA entendam que precisam conquistar a confiança do mundo diplomática e comercialmente. Minha impressão – e como americano tenho minha inclinação – é que algumas boas ideias podem facilmente ser apropriadas por outras pessoas. Por isso, acredito que a primeira medida é não prejudicar. A cura não pode ser pior que a doença. Se a cura for permitir mais monitoramento dos governos sobre a internet, melhoramos a internet? Ou é melhor usar ferramentas comercais e diplomáticas para equilibrar as coisas?Especulando um pouco, se as nações pudessem levar as denúncias a tribunais de comércio, ou usar negociações comerciais para dizer aos EUA que não estão se comportando como um ator justo, acredito que a solução possa ser encontrada em reprimendas comercais.
Historicamente, temos um precedente disso: quando a inteligência americana não queria legalizar a criptografia. No início da década de 1990 houve uma batalha política que a inteligência ganhou com o argumento de que limitar a criptografia traria mais segurança para os cidadãos americanos. Mas veio a internet, as empresas queriam poder usar o recurso da criptografia no comércio eletrônico, mais partes interessadas entraram do debate e isso acabou sendo modificado.
Pergunta – Que efeito terão essas denúncias para a relação dos EUA com os países investigados?
Friedman – Para os EUA, um dos resultados (dos vazamentos) será o prejuízo à nossa credibilidade e aos nossos interesses comerciais. Um dos pontos de discussão em relação ao acordo comercial EUA-União Europeia é o controle dos fluxos de informação pelas fronteiras. Os EUA defendem que devia haver regulação mínima, que os dados devem poder circular sem o temor de vigilância para não interferir o fluxo do comércio. Agora, essa posição será percebida na melhor das hipóteses como hipócrita, e na pior, como mentira pura. Mas as pessoas que estão negociando os tratados comerciais provavelmente não estão a par da vigilância que está ocorrendo, ou pelo menos não da escala dela.
Repito: o desafio (suscitado pelas denúncias) será chegar a algum grau de transparência e que a comunidade de inteligência americana se explique. Eles provavelmente não darão detalhes operacionais, revelando que cabos são grampeados e quais não são, mas é preciso alguma prestação de contas.
(Imagens: ICANN – Veni Markovski/ Wiki Commons – Arte sobre penetração da internet no mundo/ Junho de 2013 – Jeff Ogden/ Wiki Media Commons)